 POSSEIROS DO AMOREsta semana iniciou-se com uma notícia triste na escola de
meu filho: uma colega de sala, 12 anos, morreu no final das férias de julho.
Não foi acidente de trânsito, como se pensou no início. Ela foi morta por sua
mãe, que suicidou-se em seguida. Conhecidos disseram que a mãe era maníaco
depressiva, a garota não vivia com ela, mas com o pai. E este pai, acreditando
na melhora da ex-mulher, deixou que se aproximasse novamente da filha.
Fiquei conjecturando o que leva uma pessoa a tomar tal
atitude. Como terapeuta e observadora da natureza humana, e conhecedora de
tantas outras centenas e milhares de casos semelhantes, cheguei à conclusão de
que o problema está no âmago do ser humano, que ainda confunde amor com posse.
Posseiros do amor
Quantas vezes não ouvimos músicas, assistimos filmes,
seriados, novelas ou lemos histórias em que os amantes dizem frases como: “não
consigo viver sem você”, “se você for embora eu morro”, “eu cometo uma loucura
se você me deixar”, “ele(a) é a razão do meu viver, é a luz da minha vida”,
“vivo por ele(a)”?
É propagado desta forma que amar é ter posse – ou ser
possuído – por alguém. Qualquer situação diferente, não parece ser amor real.
Amor precisa ser demonstrado com ciúme, quebra-pau, atitudes extremadas, para
ser verdadeiro. Será mesmo?
Este tipo de amor é o que dá direito a um homem xingar sua
parceira se simplesmente “achar ou intuir” que ela olhou para alguém, pensou em
alguém, falou com outro homem que não seja ele. É o tipo de amor que dá direito
a um homem de trancar sua parceira em casa, bater nela na frente dos filhos, ou
matá-la, se ela não for “só dele”.
Esse tipo de amor é o que dá direito a uma mulher de fuçar as
roupas, o celular, o computador do parceiro, e ter uma crise histérica e voar
com as unhas em cima do “seu homem” e “da vagabunda que quer roubar ele de
mim”. É o tipo de amor que dá o aval para chantagear, “estalkear”, dizer que
vai matar ou morrer se o outro for embora.
Esse tipo de amor é o que oferece um bom motivo para um pai
ou mãe julgar-se dono de seu filho, raptá-lo, abusar sexualmente, espancá-lo,
destruí-lo com palavras, acabar com sua auto-estima ou capacidade de
independência – mantendo-o sempre perto de si- ou até mesmo matá-lo, se não
puder “tê-lo para si”.
Esse tipo de amor é aquele que fomenta ódio, inveja e ciúme
entre irmãos, quando o cidadão acha que o “meu pai” ou “minha mãe” dá menos
atenção –ou bens - para ele. Também há os que não deixam irmãos se aproximarem
dos pais, para não “amarem mais do que eles”.
Tudo isto é questão de amor? Ou é questão de posse?
Meu, meu e meu
Tenho uma amiga cujo irmão não podia sequer pensar na morte
dos pais – já bem idosos – e que jogava fora absolutamente tudo o que a irmã
dava a eles. Por dependência emocional, por não poder viver sem os pais “dele”,
por não poder ver alguém amando o que era posse dele.
Conheço mulheres que eram trancadas em casa por seus maridos,
para que não saíssem nem para comprar papel higiênico, ou um remédio para os
filhos. Eram chamadas de vagabundas se conversassem com outro homem numa festa
de família. Apanhavam se ousassem serem mais sensatas do que eles. Minha
mulher, minha posse.
Conheço muitos pais que relutam em chamar os filhos pelo
nome, e chamam de “meu bebê”, “meus pequenos”, homens e mulheres feitos. Tendo
“bebês” emocional e economicamente dependentes em casa, nunca ficarão sem eles
por perto. Seus filhos, suas posses.
Tudo gira em torno do que é “meu”. Meu pai, minha mãe, meu
esposo, meu filho, meu amigo. Tem gente que tem ciúme de amigos também. Lembro
de amiguinhas da escola – o ensino desta prática é precoce – dizendo: “se você
for amiga dela também, não sou mais sua amiga”. Ou “você é só minha, entendeu”?
Se quiser ampliar esta questão, lembre-se que todas as
guerras e disputas que temos no mundo são por territórios, terras, bens
naturais e primazia de ideologias. A “minha nação”, o “meu povo”, o “meu
petróleo”, as “minhas terras”, a “minha verdade”, a “minha religião”. Neste
assunto eu nem vou entrar, senão isto aqui se torna um livro, e não artigo.
E se eu não for seu, mas
estiver contigo?
Ouvi dizer por aí que caixão não tem gaveta. E também que
cabe só um dentro dele. Partindo deste princípio básico, devemos repensar estas
relações de posse emocional. A humanidade errou o caminho quando entendeu o
amor como “ter o outro”.
Devemos compreender e agir “sendo e vivendo com os outros”.
Minha visão de união conjugal, por exemplo, é
de duas pessoas que caminham paralelamente, com pontos em congruência em suas
vidas. Querer ficar juntos, criar filhos, construir um patrimônio, terem
algum gosto em comum, são pontos congruentes. Mas cada um pode também gostar de
um tipo de música, ter grupos de amigos, padrões alimentares, cuidados físicos
diferentes...
Posse emocional cria
desequilíbrio
Também em relação aos filhos isto é verdade. Alimentamos,
treinamos e educamos os filhos com base no que aprendemos em nossas vidas. E
achamos que eles devem ser nossas cópias, nossas posses: estudar o que
queremos, vestir o que gostamos, comer como comemos, almejar o que almejamos...
Se compreendermos que eles também têm um caminho paralelo ao
nosso, com pontos em congruência, é muito mais fácil respeitá-los. Eles são
seres humanos com vontade própria. Não são nossos objetos ou bonequinhos, que
vestimos, penteamos e inventamos a historinha para encenar. Eles têm pernas,
que vão levá-los para fora de nossa casa, mais cedo ou mais tarde.
Quando não aceitamos este fato, sofremos. Choramos.
Deprimimos. Adoecemos. Chantageamos para tê-los conosco. Síndrome do Ninho
Vazio é hoje um diagnóstico comum, dado para pais e mães que não conseguem
processar a saída dos filhos de casa. O pássaro bateu asas, e os pais não tem
mais a quem cuidar, a quem alimentar. “Deram as suas vidas” para este filho,
que não lhes dá a dele em troca, e adoecem, com um vazio emocional.
Ao se compreender que temos responsabilidades com o filho, e
uma delas é criá-lo bem para que possa ser autossuficiente em todos os
sentidos, a posse não faz sentido. Nem de achar que ele deve ficar conosco por
toda a vida, e nem de que devemos nos dedicar exclusivamente à felicidade
deles, em detrimento da nossa.
Amar sem sufocar, nem ser sufocado. Ninguém é de ninguém.
Amor incondicional
Amar incondicionalmente é isto. Querer o bem de alguém, mas
respeitá-lo e deixar seguir caminho. Auxiliar e orientar, mas deixar que ele
decida. Viver junto, e confiar no amor do outro, sem medo de perder.
Ninguém é de ninguém. Não podemos perder aquilo – ou aquele –
que não temos. Não podemos exigir do outro aquilo que não damos a nós mesmos:
amor e cuidado, atenção e valor.
Caso contrário, corremos o risco de chegar a um extremo: “se
não é meu, não será de mais ninguém”. Podemos, e somos, mais inteligentes do
que isto.
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